sábado, 23 de setembro de 2017

LIVROS, MEMÓRIAS E TESTEMUNHOS

Por Rangel Alves da Costa

Vou logo ao ponto. Quando o livreiro, editor e estudioso do cangaço Francisco Pereira Lima, o tão conhecido Professor Pereira, publicou uma nota nos grupos de estudos dos fenômenos sociais nordestinos, conclamando a família do escritor Luis Wilson para a necessidade da reedição de uma obra de sua autoria, o fez exatamente pela compreensão de sua importância no contexto nordestino e, mais de perto, para o conhecimento daqueles testemunhos pelos novos pesquisadores.
Remetendo ao livro “Vila Bela, os pereiras e outras histórias”, de Luis Wilson, eis a íntegra da nota do Professor Pereira: “Seria ótimo que este livro fosse reeditado. Ótimos conteúdos de Genealogia, Coronelismo, Cangaço e lutas de Família. Mas não encontramos para atender a demanda, que é grande. Espero que a Família do autor tome essa iniciativa”. Acentua-se aí a importante observação: “Ótimos conteúdos de Genealogia, Coronelismo, Cangaço e lutas de Família”.
E mais adiante, o comentarista Francisco Cartaxo faz importante observação. Diz Cartaxo que alguns livros importantes já foram reeditados, tais como os de Ulysses Lins de Albuquerque e outro de Luiz Wilson, sendo este “Roteiro de velhos e grandes sertanejos". Os livros de Ulysses Lins de Albuquerque citados por Cartaxo foram “Um Sertanejo e o Sertão (memórias)”, “Moxotó Brabo” e “Três Ribeiras”. De qualquer modo, a reedição mostra-se de fundamental importância. Ora, qual pesquisador de hoje não deseja ter um Maria Isaura Pereira de Queiroz, um Nertan Macêdo, um João Gomes de Lira, um Ranulpho Prata, dentre tantos outros?
O memorialismo ganha particular importância neste contexto. Se uma obra é de cunho memorialista, buscando retratar um contexto familiar ou social, de forma mais ampla ou não, sua importância não pode ser menosprezada pelo pesquisador. E assim pelo fato de que, por exemplo, um livro não necessita tratar especificamente sobre o cangaço ou sobre o coronelismo, o beatismo ou a genealogia familiar, para dele ser possível extrair elementos essenciais para a compreensão de fenômenos mais abrangentes. Mesmo uma obra de diversificado conteúdo, pode muito bem conter retalhos essenciais que precisam ser conhecidos.
Considerando-se ainda que as velhas memórias publicadas contêm quase que verdadeiros testemunhos presenciais, logo se verifica a sua proximidade com a veracidade dos fatos. Ao se debruçar sobre a própria história ou de seu contexto familiar, ao escrever sobre realidades vivenciadas ou extraídas de fatos conhecidos, o autor vai além de ser mero escritor-pesquisador para se afeiçoar ao próprio personagem.
Desse modo, quando um livro de memórias inclui nas suas páginas feições vívidas de algum tipo de coronelismo, a abordagem feita corresponde não à generalidade coronelista, mas sobre a atuação específica de determinado coronel. Daí ser possível entender com maior profundidade o funcionamento daquele clã comandado pelo seu senhor e até mesmo sua exteriorização de poder.
O mesmo se diga com relação ao cangaço. Quando o memorialista conta causos cangaceiros, situando sua família, ele próprio ou sua povoação, transcreve a realidade – ao menos aproximada – e não o que foi extraído de pesquisas ou de outras páginas. Ao fazer isso, pormenoriza situações nem sempre conhecidas ou abrangidas em outros livros de temática geral. Há no memorialismo esse dom da transcrição visual dos fatos, da aproximação do fato à realidade, permitindo uma compreensão sem enfeites ou disfarces.
Acrescento que o ofício do memorialismo é exatamente tirar do caderno da memória o que foi vivenciado ou conhecido proximamente. Neste aspecto a sua importância maior como retrato fidedigno ou aproximado de contextos sociais. Assim, quando da memória surge o relato de um episódio cangaceiro, vivenciado ou testemunhado pelo calor da hora, logo se presume com maior veracidade que qualquer outro. Nada faz crer que a memória apenas minta ou invente para agradar ou inverter a realidade.
Daí razão na preocupação do Professor Pereira. Os livros atualmente publicados não passam, em grande parte, de compilações das abordagens de outros livros. Há o embrulho, mas não o cheiro do suor da luta, da fumaça da pólvora, do sertão marcado pelas tantas vinditas de sangue. É preciso, pois, buscar naquelas memórias antigas os seus testemunhos de um tempo emoldurado na veracidade.
Tais autores nunca envelhecem. É a importância do conteúdo, ainda que apenas em retalhos, que os tornam essenciais para a compreensão de recortes históricos tão importantes para, num remendo aqui e acolá, permitir o que hoje chamamos historiografia.

Escritor
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